Maya Pandêmica
A multidão arrastava-se
lentamente, entre ruídos e vozes desconhecidas, na praça rígida da realidade. A
verdade era única e envolvia todos os participantes. Estes se lembravam de seus
afazeres, de suas preocupações e de seus projetos e desejos, compreendidos ali
como importantes para o ser no mundo. E de fato, o eram em boa medida, embora
não suficientes à totalidade exigida pela existência, pois tudo que enxergamos é
somente parte. Evidentemente, acreditando-se ou aceitando-se uma realidade
maior, causadora de tudo e superior.
A deusa Maya, da cultura espiritual hindu,
é versada na sensualidade das formas, na
volúpia do concreto e na poderosa cola que é o visível (estamos colados a tudo que enxergamos
e de forma quase inescapável. Além disso, sem nenhuma dieta que inclua uma boa espiritualização das formas), fazendo de todos servos obedientes e amantes
fervorosos da matéria. Num lapso improvável
do tempo, num canto indistinto, nem central nem periférico, ergue-se um
indivíduo, trajando vestes coloridas com dizeres que falam sobre uma lei
esquecida.
Ele está sobre os ombros da
multidão observando os eventos, na verdade, para além deles. Sua atitude é
simples, tranquila e ordeira, mas
incomum aos homens viventes. O que ele avista não é uma maravilha nem um
fenômeno celeste extraordinário, apenas a possibilidade de amplidão e de
integração com o todo maior. Ergue-se, em seu olhar, como pássaro livre de um
cativeiro algo da consciência interior que destitui a autoridade do mundo,
retirando o véu de Maya, o véu da ilusão. Olha e passeia com a alma viva,
restabelecida de si mesma. No entanto, vê-se só num primeiro momento e em
dúvida, pois o desconhecido é uma temeridade em qualquer situação.
Aquilo é uma
mudança de estado, uma morte daquela etapa, como já acontecera tantas vezes na
sua vida. Qualquer morte é uma ilusão e só há um caminho, o renascimento. "É
isso, renascimento! Então, veio a sua alma uma voz "é preciso renascer bem, na suficiência
das necessidades e no avanço dos valores e virtudes". Depois se preocupou com algo. Como trazer o que
foi visto e sentido para o mundo? Nunca seria compreendido, tanto pela
simplicidade como pela espontaneidade de sua entrega. Nunca seria perdoado.
Nunca seria visitado. A começar por si mesmo no primeiro momento. E isso era o
pior! Mas talvez fosse exagero pensar assim! Coisas novas são atrativas,
revolucionárias e merecedoras de atenção.
Mas há um preço sempre! Não podia se esquecer disso. Sem demora, logo avista outros, outros tantos, não muitos. Seu olhar irradia um brilho, um arco-íris que atrai e liga a esses outros erguidos e entusiasmados. Todos acenam alegres entre si e com cumplicidade. Sem dizer em palavras, pois não são necessárias onde se encontram, compreendem que haverá trocas e partilhas quando eventualmente se encontrarem nos domínios de Maya, que sempre está atraindo e puxando com irrefreável força. Ele vê surpreso aquilo tudo e com simpatia escancarada, então uma voz íntima diz com mansidão: "Não haverá revolução, mas evolução!"
Carlos Costa França