Por Belisa Parente, revista Zena                                   Quando dormem as feiticeiras

07/02/2017

Mulheres ativas, corajosas e sábias, costumam assustar os homens até hoje, imagine em 1491, nas velhas cidades de Albi e Cordes, na França - onde é ambientado o livro Quando dormem as feiticeiras, de Carlos Costa. É comum ver homens correrem sorrateiros quando encontram uma mente feminina desenvolta e autoconfiante. Só os mais sensíveis percebem que não somos uma grande ameaça. Na Idade Média, mulheres espiritualistas que adoravam plantas e animais eram chamadas de bruxa, investigadas e punidas pelos inquisidores.

Uma comunidade de feiticeiras é atacada e perseguida pela Inquisição. A nova líder e mestra, personagem principal do enredo, é Urtra, uma mulher determinada que usa sua "presciência" a serviço de um ideal: perpetuar os preceitos da ordem Irmandade das Lobas. Urtra foge com a pequena Yalana, as outras bruxas se dispersam, muitas são mortas. No caminho, conhecem a jovem Medrice, que abandona os estigmas católicos de pecado e penitência e se inicia na Irmandade.

A peregrinação das feiticeiras é uma aventura diária de sobrevivência, intuição, aprendizados, encontros. A meu ver, o grande feitiço do texto de Carlos decorre das mensagens, lições que pulam em cada página proporcionando reflexões para entendermos os mistérios universais e conhecermos a nós mesmos: "Deves temer sempre mais os vivos e apenas respeitar os mortos, embora estes, de fato, em muitos casos nos atrapalhem ou nos ajudem. De qualquer sorte, o mal existe no próprio coração do homem. E o maior deles á a ignorância, enquanto o desconhecimento de si mesmo, eis aí todo o mal e o verdadeiro demônio".

Ficção, história e ocultismo se mesclam numa trama contagiante. Albi foi, historicamente, a cidade onde se iniciou a Inquisição, devido ao Catarismo, crença que pregava a existência de um deus do bem e outro do mal - assim como os chineses acreditam na filosofia da dualidade do Yin e Yang. O escritor possui perceptível habilidade no jogo das palavras, misturando as pouco convencionais como "azáfama", "rijo", "compleição", "tez", com um diálogo entusiasmado e muita poesia: "O calor crescia em nossos corpos, enquanto nossas roupas aprisionavam o mais indomesticável minotauro.

Senti uma espécie de fome que não lamenta o agora, a fome do presente instante", dizia Urtra sobre a Baronesa Isabelle. O encontro amoroso entre as feiticeiras é o ponto mais quente do livro. "Um gemido agudo se fez ouvir no vazio do quarto. (...) detive o quanto pude na orla dardejante de uns poucos pelos. Era um pedido quase religioso o seu, mas mantive a penitência para que a expiação final fosse plenamente recompensadora. Um ramalhete de pelos lisos e delicados ia indicando o ardente caminho (...)".

Carlos Costa (França), em Quando dormem as feiticeiras, diz em cada página o que muito ficcionista não consegue dizer em um livro inteiro, como na passagem: "Existia dois tipos de visão: uma que toca a alma do mundo, a mais sagrada e difícil de exercer; e a outra, que é comum aos acontecimentos ordinários, mas que pode ser totalmente desfigurada de sentido se não houver treinamento e iniciação adequada".

Se a história parece medieval, afirmo que existem muitas Urtras na contemporaneidade. Bruxas com PhD e tudo mais. Historiadoras, antropólogas, biólogas, professoras... Adoradoras da natureza, interessadas nos mistérios metafísicos e femininos, visionárias que podem "atar e desatar as coisas, ver entre as brumas da ilusão e ascender ao portar da luz, das trevas, das sombras e dos sonhos", como as feiticeiras de Carlos.

© 2017 Carlos França  
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