Reflexões de Final de Ano
Estava eu sentado num restaurante, olhando através de grandes janelas para uma rua movimentada. O local tinha um pé direito bastante alto. Do teto desciam cortinas volumosas, puxadas para um dos cantos. Abaixo das janelas, um risco de ferrugem insinuava-se sob a tinta branca da alvenaria, revelando alguma estrutura metálica naquela construção. Na rua, os carros passavam ruidosamente, num ritmo frenético e incansável. O relógio ainda ia marcar 7 horas da manhã. Mas a cidade já estava completamente acordada.
Ali
tive uma sensação de "déjà vu", do já visto. E naquele momento, refletia
algo assim "a vida nos traz constantes desafios em razão de sua dinâmica extraordinária
em construir aprendizados, florescer a subjetividade, desvelar o humano em sua
inquietude e condição mortal. Por vezes, tocar o imponderável como semente e completude a se buscar, em forma de uma espiritualidade, de arte, de
filosofia, e mesmo, do conhecimento científico. E se ainda direcionássemos
nossas ações no sentido dos valores humanos teríamos um ganho mais amplo, neste
caso, um ganho do ser."
E essa reflexão tinha um motivo, lembrava-me do livro
Tibetano dos Mortos, Bardo Thodol, que argumentava que quando nos cessa essa
capacidade de aprender e crescer, há um convite formal feito à Morte para que
assim ela possa nos cobrir com suas benesses, afastando-nos dos sombrios
caminhos da estagnação. E é fato, que toda energia estagnada, não importando o
tipo de manifestação, se ela é física,
psíquica, ou metafísica tende a "apodrecer". Por isso, claro, por precaução, renovei meu credo e meus
votos como eterno estudante das coisas todas. Mas prosseguindo sobre esse livro secular e preciosíssimo, visitado
pele minha memória, nessa brecha da "Matrix", em que o tempo parece querer
chamar mais nossa atenção.
O Bardo Thodol nos assegura ainda que é mais valiosa a lição que tiramos de cada evento e situação do que o preço que pagamos
por ela. Ou seja, deveríamos esquecer, desconsiderar, ou até exorcizar
completamente uma vivência perturbadora em si, concentrando-nos naquilo que foi
aprendido, assimilado e transformado em nosso interior ou com a potência para
tal. O que não quer dizer que seja fácil tal disposição, mas necessária a um
maior equilíbrio de nós todos, peregrinos deste plano existencial.
Assim, absorvermos de toda vivência o essencial, o fator de crescimento.
Particularmente, sobre o que nós somos
ou nos tornamos, superamos ou o que necessitamos superar; sobre o que
descobrimos do mundo, do mundo dentro do mundo da gente, das pessoas, das
situações ou de algo mais sutil, inefável. E não é relevante se essa lição seja
praticamente intransmissível ao outro. O que acontece bastante, diga-se de
passagem. De outro lado, existem aprendizados que funda ou representa até mesmo
uma nova vida dentro da vida, da nossa experiência enquanto percepção de uma
mesma realidade.
E a isso devemos dá uma atenção mais especial, pois nascimento-morte-renascimento é uma constante da existência em todos os
seus planos vivenciais. E é o que significam os ciclos naturais ou aqueles
promovidos pela cultura que estamos inseridos, como a passagem de ano. Os
antigos entendiam bem isso tanto no plano físico como no plano simbólico, pois
o sol nascia e morria todos os dias. Sendo uma imagem poderosíssima por si
mesma, sobretudo naquele tempo, onde tudo possuía alma, desígnio e mistério.
Modernamente
somos chamados a fazer uma reflexão consciente e verdadeira de nossas escolhas,
orientados pela busca pessoal e experiência de vida. Também testar nossas
percepções da realidade e ressignificar atitudes e ações. Michel Foucault,
filósofo contemporâneo, preconizava "é preciso sacudir as evidências", "tornar
o visível, visível."
Carlos França