Reflexões de Final de Ano

16/12/2019

Estava eu sentado num restaurante, olhando através de grandes janelas para uma rua movimentada. O local tinha um pé direito bastante alto. Do teto desciam cortinas volumosas, puxadas para um dos cantos. Abaixo das janelas, um risco de ferrugem insinuava-se sob a tinta branca da alvenaria, revelando alguma estrutura metálica naquela construção. Na rua, os carros passavam ruidosamente, num ritmo frenético e incansável. O relógio ainda ia marcar 7 horas da manhã. Mas a cidade já estava completamente acordada.

Ali tive uma sensação de "déjà vu", do já visto. E naquele momento, refletia algo assim "a vida nos traz constantes desafios em razão de sua dinâmica extraordinária em construir aprendizados, florescer a subjetividade, desvelar o humano em sua inquietude e condição mortal. Por vezes, tocar o imponderável como semente e completude a se buscar, em forma de uma espiritualidade, de arte, de filosofia, e mesmo, do conhecimento científico. E se ainda direcionássemos nossas ações no sentido dos valores humanos teríamos um ganho mais amplo, neste caso, um ganho do ser."

E essa reflexão tinha um motivo, lembrava-me do livro Tibetano dos Mortos, Bardo Thodol, que argumentava que quando nos cessa essa capacidade de aprender e crescer, há um convite formal feito à Morte para que assim ela possa nos cobrir com suas benesses, afastando-nos dos sombrios caminhos da estagnação. E é fato, que toda energia estagnada, não importando o tipo de manifestação, se ela é física, psíquica, ou metafísica tende a "apodrecer". Por isso, claro, por precaução, renovei meu credo e meus votos como eterno estudante das coisas todas. Mas prosseguindo sobre esse livro secular e preciosíssimo, visitado pele minha memória, nessa brecha da "Matrix", em que o tempo parece querer chamar mais nossa atenção.

O Bardo Thodol nos assegura ainda que é mais valiosa a lição que tiramos de cada evento e situação do que o preço que pagamos por ela. Ou seja, deveríamos esquecer, desconsiderar, ou até exorcizar completamente uma vivência perturbadora em si, concentrando-nos naquilo que foi aprendido, assimilado e transformado em nosso interior ou com a potência para tal. O que não quer dizer que seja fácil tal disposição, mas necessária a um maior equilíbrio de nós todos, peregrinos deste plano existencial.

Assim, absorvermos de toda vivência o essencial, o fator de crescimento. Particularmente, sobre o que nós somos ou nos tornamos, superamos ou o que necessitamos superar; sobre o que descobrimos do mundo, do mundo dentro do mundo da gente, das pessoas, das situações ou de algo mais sutil, inefável. E não é relevante se essa lição seja praticamente intransmissível ao outro. O que acontece bastante, diga-se de passagem. De outro lado, existem aprendizados que funda ou representa até mesmo uma nova vida dentro da vida, da nossa experiência enquanto percepção de uma mesma realidade.

E a isso devemos dá uma atenção mais especial, pois nascimento-morte-renascimento é uma constante da existência em todos os seus planos vivenciais. E é o que significam os ciclos naturais ou aqueles promovidos pela cultura que estamos inseridos, como a passagem de ano. Os antigos entendiam bem isso tanto no plano físico como no plano simbólico, pois o sol nascia e morria todos os dias. Sendo uma imagem poderosíssima por si mesma, sobretudo naquele tempo, onde tudo possuía alma, desígnio e mistério.

Modernamente somos chamados a fazer uma reflexão consciente e verdadeira de nossas escolhas, orientados pela busca pessoal e experiência de vida. Também testar nossas percepções da realidade e ressignificar atitudes e ações. Michel Foucault, filósofo contemporâneo, preconizava "é preciso sacudir as evidências", "tornar o visível, visível."


Carlos França

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